quarta-feira, 4 de junho de 2008

“O Peter Pan traído”

“Foi o mês de todos os sonhos. A ocupação da Universidade de Paris e as manifestações estudantis levaram mais de 600 mil estudantes à rua a defrontarem-se violentamente com a polícia no Quartier Latin. Dali o turbilhão galgou os limites do reduto universitário e conquistou a adesão dos trabalhadores. Em poucos dias, dois terços da população activa, cerca de 10 milhões de franceses estavam em greve. Os grevistas, aliados aos estudantes exigiam o “impossível” “sejamos realistas exijamos o impossível, ou seja, o controlo de gestão e o poder, contrariando todas as orientações do Partido Comunista e dos sindicatos da CGT. A crise política instalou-se. O Presidente da República, Charles de Gaulle considerou a situação incontrolável, dissolveu a Assembleia e perante o alargamento da violência e dos distúrbios desaparece do país. Os estudantes chegam a declarar o que parecia inimaginável: o triunfo da anarquia! Mas a ressaca preparada por de Gaulle criou um verdadeiro volte face. Num comunicado difundido via rádio – como nos tempos de guerra – apela à ordem e convoca eleições. O efeito é devastador. Se antes da comunicação parecia que a França era a Rússia de 1917, com os soviets (conselhos de operários) prestes a tomar o poder, depois das palavras do velho General retomou os caminhos da Restauração.

Mas na secção dos perdidos e achados da história ainda ninguém levantou o Maio de 68. a tendência é analisar parcialmente este movimento com muitos clichés. Em 1948, Marx e Engels publicaram o “Movimento Comunista” e o começo dessa cartilha anunciava que “um espectro paira sobre toda a Europa; o espectro do comunismo”. Passados 120 anos, Paris faz renascer os espectros e as utopias de todos os libertários, principalmente aos desiludidos da revolução proletária, que encalhou ao longo do século XX nas brutalmente repressivas e castrantes sociedades do chamado socialismo real de feição soviética ou chinesa. Dos empedrados nas ruas da capital francesa, sob os quais os revoltosos diziam que estava a praia, (“debaixo dos empedrados, a praia!”) e que eram atirados contra os polícias de choque a chama de Prometeu voltava a luzir. Os grupúsculos de estudantes de origem burguesa sem qualquer ligação operária estavam prestes a concretizar os sonhos mais impossíveis de gerações de visionários e revolucionários.

Da iconografia desse momento passam em movimento lento as imagens de Marx, Lenine, Estaline, Mao, Che, Fidel, Ho-Chi-Min, mas também Bokarine, Trotski, Rosa Luxemburgo e até Marighella, mas nenhum deles, mortos ou vivos, ganhou a parada e alguns só deixaram uma sinistra herança de sangue. A ressaca do movimento forneceu caldo de cultura para o florescimento das brigadas vermelha, dos Baader Meinhoff e outros grupos de natureza criminosa, as mais das vezes instrumentos de manipulação dos múltiplos serviços secretos que pululavam na Europa nos derradeiros anos da Guerra Fria.

Ao contrário da citada iconografia, o Maio de 68 tem um lastro profundamente comportamental e grande parte do pensamento dos soixant-huitards provém de Freud e de Herbert Marcus. E um tanto hereticamente, pode dizer-se, de James Matthew Barrie, o escocês criador de Peter Pan tem também um cantinho nessa galeria de notáveis. Os soixent-huitards advogavam: “desobedece primeiro…” e Peter Pan é o jovem que recusa ser adulto e alia a liberdade absoluta ao prazer da aventura permanente. Os revolucionários de 68 fizeram jus a essa atitude e assumiram-na nas palavras de ordem que ainda hoje nos encantam: “Lizes moins, vivez plus”, “Je suis marxiste tendence Groucho”, “La revolution est encroyable parce que vraie”, “Cours, camarade; le vieux monde est derrièrre de toi!” (Lê menos e vive mais; Sou marxista tendência Groucho; A Revolução é incrível porque é verdadeira; Corre camarada: o velho mundo está atrás de ti – Esta gritada durante as cargas policiais).

Os protagonistas do Maio de 68 provêm de uma geração profundamente cinematográfica. O cinema depois da guerra criou mitos e ganhou estatuto de arte. A televisão banalizou a comunicação pela imagem. O poderio da imagem surge nessa década, (Kennedy versus Nixon) e a política descobre esta nova fórmula, mas é a geração soixaent-huitard que faz da imagem um trunfo de elevada importância na propaganda. Os cartazes, as fotos, a banda desenhada, a caricatura, as atitudes, a pose, o ar irreverente entra em cena com uma força até então pouco usual.

A exuberância quase libidinosa da revolta tem muito de espectáculo e de fetichismo. O detonador deste movimento não nasceu propriamente em Paris mas em Nanterre, nos arredores da capital, um verdadeiro feudo de movimentos esquerdistas. O rastilho deveu-se a uma atitude de repressão sexual. Uma disposição da Reitoria proibia os rapazes de visitarem as raparigas nos seus quartos. Em resposta, a agitação cresce e dão-se os primeiros tumultos, com portas arrombadas e vidros partidos. A Universidade responde com a criação de um conselho de disciplinar para julgar e castigar os jovens onde pontificavam, o então rebelde, Daniel Cohn-Bendit. O presidente do conselho disciplinar dirigiu o interrogatório a Cohn-Bendit, líder do grupo autor dos tumultos: “Em 22 de Março (dia dos desacatos) estava na faculdade? –Não, diz Cohn Bendit. –Onde estava? –Estava na minha casa. –E que fazia você em sua casa às três horas da tarde? – Fazia amor, senhor presidente, uma coisa que a si seguramente nunca lhe aconteceu”. Estava lançado o tom.

Este é o verdadeiro “Peter Pan” do movimento estudantil. Judeu de origem alemã, chegou a ser considerado “indesejável” pelas autoridades francesas, assumiu a face mais visível deste movimento. Cohn-Bendit corporizou como nenhum outro a imagem do Maio de 68 e da materialização das ideias de Marcuse, filósofo alemão, também de origem judaica, naturalizado americano e odiado tanto pela direita conservadora como pela esquerda. Protagonizada nas suas obras “Eros e Civilização” de 1955, “Homem Unidimensional”, “Tolerância Repressiva” e “Ética da Revolução”, uma mudança no mundo capitalista e no chamado mundo comunista. Marcuse defende uma nova racionalidade do prazer, contra a concepção do indivíduo como Logos (razão), partindo da interpretação da obra de Freud à luz do marxismo. O filósofo desenvolveu uma teoria onde o Eros (amor) é a pulsão que busca a satisfação na sexualidade, no prazer e no amor.”

Este legado comportamental, posto em prática na voragem dos acontecimentos de Maio foi uma bomba atómica nos costumes. A mulher assume a sua sexualidade e o seu direito ao prazer e ao orgasmo.

Mas passado o espectáculo e a efervescência, percebemos que o Maio de 68, por enquanto, é apenas uma recordação. A geração de 68 e os seus actores directos tornaram-se os inquisidores e nos justicialistas contemporâneos, servindo Estados que querem juntar a “moral” com o direito. Estados que produzem normativas disciplinares da moralidade, da saúde, dos comportamentos e do politicamente correcto. A esquerda light, que domina a ideologia dos Estados e cita as palavras de ordem do Maio de 68 quer tomar conta das consciências e promover uma relação incestuosa entre o Direito e a sua “moral”.”

Autor: Jorge Lemos Peixoto
Fonte: Revista Parq, nº 4 (de Maio de 2008)

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