terça-feira, 17 de junho de 2008

A “Europa” e a democracia

A “Europa” manda à revelia do povo. A “Europa”, ou seja, um certo grupo dirigente da Alemanha e da França e a burocracia de Bruxelas. Foi assim desde o princípio. A “Europa” legifera, dirige, proíbe, regula, comina e o mais que entende, os pequenos países recolhem com reverência a vontade da “Europa” e o cidadão obedece, sem saber porquê e, pior ainda, sem saber a quem. Tudo para sua saúde e felicidade, naturalmente. A convenção estabelece que os “grandes” seguem sempre uma ideia angélica, mesmo quando a crassa ralé não a compreende. Mas, como a democracia faz parte da doutrina e do dogma, é de quando em quando necessário “consultar” a figura sinistra do eleitor e o eleitor, por muito que o sarrazinem e apertem, tende ocasionalmente a estragar a obra da verdade e da luz.
Anteontem, a Irlanda votou contra o Tratado de Lisboa por uma confortável maioria (53,4 por cento). Não razões que a convencessem. Persistiu, impassível, na sua estúpida obstinação. O caso não é novo.
A própria Irlanda já tinha votado contra “Nice”. A Dinamarca já tinha votado contra “Maastricht”. E em 2005, incompreensivelmente, a França e a Holanda tinham votado contra uma exemplar “Constituição”, que o Tratado de Lisboa veio depois substituir Este último percalço resolveu, de resto, a “Europa” a pôr o povo definitivamente de lado e a encarregar os políticos de “ratificar” a coisa. No Parlamento, claro, sob vigilância. Só que a Irlanda, por causa de uma lei absurda, não podia escapar ao referendo e o exercício, como se esperava, acabou mal.
O Tratado de Lisboa, que requer para entrar em vigor o consentimento unânime dos signatários, pareceu por uma vez morto e enterrado. Sócrates por um pouco não chorou e a “Europa”, pela forma, gemeu. Não valia a pena. Durão Barroso disse logo ao Mundo e arredores que o cadáver continuava vivo. A Irlanda não conta. Basta inventar uma nova maneira para rodear, calar ou suprimir a opinião da ignorância, que se julga independente ou soberana. Ou se arranja um segundo referendo (e um terceiro, e um quarto) até a Irlanda aprender a lição. Ou se empurra a Irlanda para um estatuto ambíguo, entre o cá e o lá, o dentro e o fora. Ou se resolve imediata e fraudulentamente atribuir ao Conselho Europeu a “ratificação” final. Suceda o que suceder, a “Europa” não “pára” por uns votos. De que, aliás, não gosta.
.
Autor: Vasco Pulido Valente
Fonte: jornal Público de 15 de Junho de 2008

Sem comentários: