Aqui vos deixo (e aqui guardo) o artigo do António Lobo Antunes de que vos tinha falado...
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"Agora que já pouco te falta
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Acabei de lanchar no cafezinho em que como uma torrada e voltei para aqui, o lugar onde escrevo e onde desde meados de Novembro não escrevo nada. Terminei um livro por essa altura, para ser publicado em Portugal no fim do ano que vem, e nestes mais de dois meses nem uma linha. Sento-me à mesa e nada. Há quatro ou cinco dias uma coisa começou a formar-se dentro de mim. Não posso dizer que seja uma ideia porque não é uma ideia, são filamentos, vozes, vagas caras que se desvanecem. Dá-me a sensação que é o próximo trabalho. Decidi começar no dia 25 de Fevereiro, na ilusão de que até lá o material se defina um pouco. Quero fazer o meu livro mais importante, o definitivo, o último, tão importante que, depois dele, já não precise de compor nada. Então saio e vou para um banco de jardim contar pombos e assistir à bisca dos reformados. Talvez ponha um anúncio de convívio no jornal. A semana passada li um desses em que o cavalheiro começava por anunciar que tinha carta de ligeiros e pesados. Fiquei a sonhar com a carta de ligeiros e pesados o dia inteiro. Noutro uma senhora pedia um homem educado e não fumador. Imaginei uma viúva a beber chá de tília a uma camila com braseira dentro. Talvez os nossos dedos se encontrassem no bule. Retratos de defuntos, incluindo um marido sombrio numa moldura com rosinhas de cobre, e ela a inspeccionar-me a roupa, suspeitosa. Dedos ossudos, quase transparentes, que deixavam que os acariciasse um momento antes de se escaparem numa vergonha corada. Um gato a desaparecer quando fechava os olhos, tornando-se bibelot. Cortinas a esconderem a rua. Sofás protegidos por plásticos. Uma esfregona num desvão.
Portanto desde meados de Novembro que não escrevo nada. Espero. Normalmente acho que acabei, que não volto a ser capaz. Agora apareceu-me este fiozinho de esperança. Mas o que me vem à cabeça é tão difícil de fazer, tão ambicioso, tão para além das minhas palavras e das minhas forças. Só começo quando estou bem seguro de não se capaz. Não seria mais fácil beber chá de tília a uma camila com braseira dentro?
22 de Janeiro hoje
Um dia sei lá porquê, longo, longo. Sol e pombos na rua, criaturas vestidas de verde a multarem ferozmente os automóveis estacionados, uma rapariga que caminha como os peixes do aquário, um espasmo de barbatanas e pronto. Saio da porta, volto à mesa. Onde é que eu ia? E quem se importa onde é que eu ia, onde é que eu vou?
As cartas por responder acumulam-se na mesinha. Caixotes de livros. Sorrisos de pessoas de quem gostei e a morte levou. Levou mas continuam comigo, tão presentes. Respiram. De algumas oiço-lhes a voz. Olá a todos, deixem-se estar aí. Embora finja que não necessito tanto de companhia. Um estar aí que é já muito. E daqui a nada noite e eu dissolvido nela. Dissolvido nela. Dissolvido nela. Até não me ficar nem uma ideia de quem sou.
Cavalheiro sem carta de ligeiros e pesados procura senhora nas mesmas condições, quer dizer sem uma ideia de quem é. Se abrir a torneira ouvirei o ruído do mar?
Em pequeno, na cama, as ondas chegavam até mim, uma após outra, misturadas com o vento nos pinheiros e o imenso mistério da vida. E escutava-as na certeza de ser feliz e eterno. Amanhecia e o mar calava-se. Via-o na janela no mesmo sítio, em silêncio, ele que no escuro encostava a cabeça aos caixilhos para me ver dormir e me seguia com aqueles olhos que o mar tem, ao mesmo tempo zangados e cheios de lágrimas e, no corredor da casa, os passos da insónia, tac tac tac. Não sei se a 25 de Fevereiro começo a escrever. Mudo de posição na cadeira, volto a página, pergunto
- Como é que se faz um livro?
Porque continuo sem saber como se faz um livro. Não me acho capaz de explicar os que até agora se publicaram, o que lembro melhor é o esforço enorme e, por vezes, mais raramente, uma alegria indizível. Ainda existirá algo em mim?
O mar e o cacto a seguir ao muro, a oscilar rigidamente. Agarra-te ao teu fiozinho de esperança, experimenta. Começa a preparar a mão, coisa que contigo leva tempo. Tenta que aquilo que existe em qualquer parte tua caminhe na direcção certa onde as palavras te esperam adormecidas. Acorda-as devagarinho, não escutes os passos da insónia, tac tac tac, no corredor. Tens 10 anos, 20 anos, tens todas as idades ao mesmo tempo, estás cheio de medo mas começa. O mar, o cacto, o sol, os pombos. Deixa tudo o que não seja o livro e começa. Se tiveres sorte é o teu livro. Se tiveres ainda mais sorte o teu último livro, a razão de teres nascido.
Depois, sem te voltares para trás, acenas adeus à medida que te afastas para um jardim de reformados até que a morte te diga
- Já vai sendo tempo, filho
e poderás sorrir-lhe como a uma namorada antiga que nunca envelheceu
sorrir-lhe
(entendes o que eu digo?)
numa mistura de timidez e confiança,
porque
(entendes mesmo o que eu digo?)
te tornarás feliz e eterno."
António Lobo Antunes
In Revista Visão (de 21 de Fevereiro de 2008)
Portanto desde meados de Novembro que não escrevo nada. Espero. Normalmente acho que acabei, que não volto a ser capaz. Agora apareceu-me este fiozinho de esperança. Mas o que me vem à cabeça é tão difícil de fazer, tão ambicioso, tão para além das minhas palavras e das minhas forças. Só começo quando estou bem seguro de não se capaz. Não seria mais fácil beber chá de tília a uma camila com braseira dentro?
22 de Janeiro hoje
Um dia sei lá porquê, longo, longo. Sol e pombos na rua, criaturas vestidas de verde a multarem ferozmente os automóveis estacionados, uma rapariga que caminha como os peixes do aquário, um espasmo de barbatanas e pronto. Saio da porta, volto à mesa. Onde é que eu ia? E quem se importa onde é que eu ia, onde é que eu vou?
As cartas por responder acumulam-se na mesinha. Caixotes de livros. Sorrisos de pessoas de quem gostei e a morte levou. Levou mas continuam comigo, tão presentes. Respiram. De algumas oiço-lhes a voz. Olá a todos, deixem-se estar aí. Embora finja que não necessito tanto de companhia. Um estar aí que é já muito. E daqui a nada noite e eu dissolvido nela. Dissolvido nela. Dissolvido nela. Até não me ficar nem uma ideia de quem sou.
Cavalheiro sem carta de ligeiros e pesados procura senhora nas mesmas condições, quer dizer sem uma ideia de quem é. Se abrir a torneira ouvirei o ruído do mar?
Em pequeno, na cama, as ondas chegavam até mim, uma após outra, misturadas com o vento nos pinheiros e o imenso mistério da vida. E escutava-as na certeza de ser feliz e eterno. Amanhecia e o mar calava-se. Via-o na janela no mesmo sítio, em silêncio, ele que no escuro encostava a cabeça aos caixilhos para me ver dormir e me seguia com aqueles olhos que o mar tem, ao mesmo tempo zangados e cheios de lágrimas e, no corredor da casa, os passos da insónia, tac tac tac. Não sei se a 25 de Fevereiro começo a escrever. Mudo de posição na cadeira, volto a página, pergunto
- Como é que se faz um livro?
Porque continuo sem saber como se faz um livro. Não me acho capaz de explicar os que até agora se publicaram, o que lembro melhor é o esforço enorme e, por vezes, mais raramente, uma alegria indizível. Ainda existirá algo em mim?
O mar e o cacto a seguir ao muro, a oscilar rigidamente. Agarra-te ao teu fiozinho de esperança, experimenta. Começa a preparar a mão, coisa que contigo leva tempo. Tenta que aquilo que existe em qualquer parte tua caminhe na direcção certa onde as palavras te esperam adormecidas. Acorda-as devagarinho, não escutes os passos da insónia, tac tac tac, no corredor. Tens 10 anos, 20 anos, tens todas as idades ao mesmo tempo, estás cheio de medo mas começa. O mar, o cacto, o sol, os pombos. Deixa tudo o que não seja o livro e começa. Se tiveres sorte é o teu livro. Se tiveres ainda mais sorte o teu último livro, a razão de teres nascido.
Depois, sem te voltares para trás, acenas adeus à medida que te afastas para um jardim de reformados até que a morte te diga
- Já vai sendo tempo, filho
e poderás sorrir-lhe como a uma namorada antiga que nunca envelheceu
sorrir-lhe
(entendes o que eu digo?)
numa mistura de timidez e confiança,
porque
(entendes mesmo o que eu digo?)
te tornarás feliz e eterno."
António Lobo Antunes
In Revista Visão (de 21 de Fevereiro de 2008)
2 comentários:
Do pouco que conheço, não gosto muito dos escritos do António Lobo Antunes. Mas gostei bastante deste.. "ensaio". Até porque acaba por não ser nem um livro, nem um conto, nem nada "oficial". É uma estória vivida e descrita sem pensar, sem preocupações. E gosto assim. Acho que entendo o que diz...
Parabéns pelo blog.
Cumprimentos
Caro André Pereira,
Muito obrigado. Assim sendo, mais dia, menos dia, prometo deixar-te aqui o texto do António Lobo Antunes que mais gosto. É dentro do mesmo registo. Espero que também seja do teu agrado.
Cordiais Cumprimentos
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