sábado, 19 de abril de 2008

Tons que tocam

Intérprete: Mesa (com Rui Reininho)

Tema: Luz Vaga

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Como prometido II

Desde que não estás comigo

Oito meses já. Oito meses e onze dias e, se olhar para o relógio, digo-te o número de horas: oito meses. onze dias e dezoito horas. Quase dezanove. Há oito meses, onze dias e dezoito, quase dezanove horas tu no patamar, com duas malas, a carregares no botão do elevador que chegou num instante para mim e demorou eternidades para ti pelo modo como batias com a ponta do sapato no chão e eu no capacho a ver-te, demasiado cheio de palavras para te conseguir falar. Depois o elevador parou, abriste a porta, empurraste a porta, empurraste as malas para dentro e foste-te embora sem olhar. O perfume aguentou-se um bocado por ali. Quando deixei de o sentir fechei a porta. Passada uma semana desapareceu do apartamento também. Inclusive do quarto. Inclusive do armário onde a tua roupa esteve. Cabides vazios, nenhum cheio. Sobrou metade de um brinco numa gaveta. Não um brinco caro, uma dessas coisas de fantasia que usavas no verão. Plástico e arame, arame e plástico com uma conchinha verdadeira na ponta. A conchinha baloiçava ao falares. Fui buscar o martelo e acabou-se o brinco. O problema foi a mossa que deixei na cómoda. Gostava que tivesses visto: plástico e arame quebrados por todo o lado. A conchinha não sei onde pára, nunca mais lhe pus a vista em cima. Um destes domingos, que é quando passeio pela casa a odiar-te, encontro-a a meio escondida numa frincha do rodapé, puxo-a com uma faca ou isso e aí está o martelo de novo. Com mais força e a conchinha pó. E a partir daí sim, somes-te por completo. Um alívio. Mas como não sou vingativo desejo-te que estejas bem, desde que não te ponha a vista em cima. E se te puser a vista em cima oxalá não tenha o martelo. Oito meses imagine-se. Apetece-te um dos iogurtes fora de prazo do frigorífico? Desde há oito meses que só há coisas fora de prazo aqui, a começar por mim. Claro que continuo a trabalhar, a sair com os rapazes à sexta, a trazer de tempos a tempos uma pequena ou outra sem brincos de fantasia, com brincos autênticos. Uma delas aspirou-me o chão. Queria fazer o ninho comigo, ocupar o teu lugar. Era ruiva. Não ruiva pintada, ruiva autêntica. Sempre que conheço uma ruiva começo a contar-lhe as sardas, é mais forte que eu, e esqueço-me dos deveres de homem: fico para ali de dedinho espetado, a somar. Aspirou-me o chão, foi lá a baixo deitar dúzias de jornais antigos no contentor, informou
- Esta escova de dentes está uma miséria
não conseguiu ligar a torradeira, deu-me um papelinho com o telefone e foi-se embora. Hei-de tê-lo por aí, na gaveta das facturas. Não conseguiu ligar a torradeira visto que ninguém consegue ligar a torradeira, em Março deitou umas chispas, deu um salto e faleceu. As fatias de pão continuam entaladas no interior do mecanismo, invisíveis, excepto um cogumelozinho de bolor que surge de vez em quando do metal amolgado. À parte isso e à maior parte das torneiras pingarem vai-se vivendo: oito meses e onze dias sem ti é obra. A minha mãe sugere que me case outra vez. Lava-me a roupa, dá um jeito nas coisas. Não falamos de ti. Fala da enteada da vizinha do andar de baixo, que tem bom feitio, é solteira e trabalha nos impostos. Um autocarro atropelou-lhe o namorado. A minha mão garante que já me mencionou a ela várias vezes, nessas conversas à porta do prédio, cada qual com a sua chave e o seu saco de compras e a enteada deu ares de interessar-se. Faço ideia o que a minha mãe lhe terá dito. Sei que pediu um retrato para me mostrar e no retrato uma mulher de ar triste, sem idade. Não ruiva. Pelo menos não teria de contar-lhe as sardas. O problema é que a tristeza se pega e não me vejo a aquecer o leite de manhã apagando uma lágrima na manga do pijama. O autocarro arrastou-lhe o namorado uns vinte metros e essas coisas marcam. Ou então foi sempre triste, há pessoas a quem alegra sofrer. O que me custou mais no retrato é que usava brincos parecidos com os teus, de conchinha na ponta.
Sinceramente não me apetece martelar mais nada.
Oito meses e onze dias, olha-me para a rapidez do tempo. Daqui a momentos sou velho, quarenta anos, cabelos brancos, pedras na vesícula, essas maçadas, uma eternidade para subir os degraus, problemas para segurar o cuspo do lado esquerdo da boca. Tu não mudaste nada de certeza, nunca mudaste desde que te conheci. Umas rugazitas, talvez. Não, nem sequer umas rugazitas, intacta.
Chamavas-me
-Meu coelhinho
ao principio, depois do princípio passaste a chamar-me
- Amadeu
e depois de
-Amadeu
passaste a não chamar-me fosse o que fosse. Às vezes dava por ti a espiar-me com pena, abanando a cabeça. Não tive coragem de perguntar o que significava o abanar de cabeça, suponho que desilusão a meu respeito, ou
- O que estou a fazer aqui?
ou
- Porque carga de água te aceitei, enganei-me.
ou qualquer sentimento desse género e eu calado. O que podia dizer? Tudo se passou em silêncio, aliás. Um feriado estava eu na sala, ouvi barulho de gavetas no quarto e eras tu às voltas com as malas. Nenhum de nós soltou um pio. Arrumava a roupa de costas para mim e ias empilhando camisolas dobradas. Escutavam-se os automóveis a passar na rua, ia jurar que se escutava o pêlo do tapete ao lado da cama a crescer. Quando acabaste afastei-me para o lado e deixei-te passar. Não senti nada salvo uma espécie de vazio, um oco enorme. Perguntas que não fui capaz de fazer. A lembrança do
-Meu coelhinho
A atazanar-me. O que sucedeu connosco, explica-me o que sucedeu connosco. Tenho a certeza que não mudei. Quem mudou foi o andar, os móveis, apesar do sol a impressão de que me chovia por dentro. Se fechasse os olhos
(não fechei os olhos)
a chuva a descer atrás das minhas pálpebras. Não fui à janela ver-te na rua, fiquei ali encostado ao louceiro, com ganas de meter-me debaixo dele como um coelhinho. O teu coelhinho. Há sempre alturas em que apetece pegar num bicho ao colo, nem que seja eu, e passar-lhe a mão pelo corpo, das orelhas à cauda, a dar conta do coração muito rápido, muito rápido, de uma vida aflita debaixo dos dedos. Oito meses, onze dias, dezanove horas e meia. Para a semana a minha mãe prometeu trazer-me a enteada da vizinha. Não vai encontrar-me: estarei no interior da torradeira como as fatias de pão. Quando muito hão-de ver o cogumelo de bolor de uma lágrima a surgir do metal amolgado.

Autor: António Lobo Antunes
In: Revista Visão de 8 de Fevereiro de 2007
post scriptum -Aqui fica o texto que tinha prometido ao André Pereira. Peço desculpa pela demora mas tive que vasculhar algumas gavetas para o encontrar.

sábado, 12 de abril de 2008

Rir e Chorar

"Em menos de 15 dias, Luís Filipe Menezes propôs para espanto e abatimento dos poucos portugueses, que persistem em o levar a sério: 1.º Um debate de fundo sobre a “qualidade” da democracia sob o Governo socialista; 2.º A “harmonização” fiscal com a Espanha; 3.º A “autonomia sem limites” da Madeira e Açores; 4.º E uma nova Constituição. Como se isto não chegasse, algumas personagens menores do PSD tentaram arranjar um “escândalo” que envolvia a vida privada do primeiro-ministro. Para guia do cidadão comum, devia existir um registo oficial e diário do que Luís Filipe Menezes anda por aí a dizer. Já começa a ser difícil seguir o delírio político do “chefe” e do partido, sem ajuda organizada. A trapalhada, de resto, atingiu proporções que ultrapassam a inteligência média.
As sondagens, de resto, provam isso mesmo: 26,5 por cento do eleitorado não confia em Menezes para dirigir o país. Pior: só 26 por cento tenciona votar PSD (menos do que na pior época de Marques Mendes). Não tarda muito nem esse último grupo de fiéis resiste. Terça-feira, por exemplo, Ângelo Correia saltou do barco. Não por interesse com certeza, porque não tem nada a perder. Provavelmente, por vergonha. É preciso, explicou ele, que o PSD recupere a “capacidade de pensar”. Mas quem lá pela casa pensa? Pedro Passos Coelho, um bom amigo de Ângelo, ofereceu a sua pessoa e, oferecendo a sua pessoa, aumentou a confusão, que, por outra parte, lamenta. O PSD adquiriu um novo, presuntivo chefe (para o seu longo cemitério da espécie) e ficou mais dividido do que estava. O pânico nunca é racional.
Se esta tragédia ou esta farsa, como quiserem, fosse um episódio interno do PSD, não vinha grande mal ao mundo. Infelizmente, nenhum regime sobrevive à degradação do sistema partidário em que assenta e o regime vigente assentou sempre, e até agora, em dois partidos: no PS e no PSD. Sem o PSD (e com Paulo Portas cercado), não há direita e, sem direita, não há “alternância”. Pode haver, em 2009, uma segunda maioria absoluta e um Partido Socialista Institucional, como dantes no México, que tornará Cavaco irrelevante. Ou seja, se a esquerda (o PC e o Bloco) conseguir o milagre de reduzir o PS à maioria relativa, pode haver um corpo-a-corpo geral, no meio de crise económica sem concerto. As duas coisas são um desastre para toda a gente. O dr. Menezes, que nos faz rir, ainda acaba por nos fazer chorar.”
In Jornal Público de 11 de Abril de 2008
Autor: Vasco Pulido Valente

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A chama de Prometeu e o sopro olímpico dos tibetanos

Quando Prometeu roubou o fogo, elemento sagrado na mitologia grega, a Zeus, para o oferecer aos mortais, estava longe de imaginar que um dia um povo o tentaria apagar.
No entanto, oprimidos há mais de cinquenta anos pela República Popular da China, os tibetanos viram na viagem mundial da tocha olímpica uma oportunidade com um mediatismo impar para confrontar o Mundo com a situação que o seu país atravessa devido à ocupação chinesa, e às constantes violações dos direitos humanos que o seu povo sofre. Assim, ao passar por Londres e Paris a tocha olímpica teve um caminho penoso acompanhado por manifestantes que desejam obrigar o Mundo a não olhar para o lado quando se fala na crise do Tibete.
A ocupação chinesa iniciou-se em 1949. Em 1959, deu-se um levantamento tibetano que não consegui atingir o objectivo de libertar o país da ocupação chinesa. Pelo contrário, esse levantamento fragilizou a posição tibetana e consolidou a posição do governo comunista.
Desde o início da invasão, aproximadamente 1,2 milhões de tibetanos morreram, cerca de cem mil tibetanos, entre os quais Dailai Lama (Oceano de Sabedoria – o líder espiritual do povo tibetano) foram obrigados ao exílio na Índia, e mais de seis mil e duzentos mosteiros foram destruídos, restando apenas treze. Daí os protestos a que se tem assistido denunciarem, não só a invasão chinesa, a violação de direitos humanos, mas também o genocídio cultural, uma vez que a República Popular da China tem dirigido esforços também no sentido de enfraquecer tanto quanto possível a cultura e a religião tibetanas.
O Governo da República Popular da China afirma que o Tibete já fazia parte do seu território, porém, a verdade é que os Dalai Lamas governaram o país sem interferências chinesas até ao início do século XX.
O 14º Dalai Lama (Tenzin Gyatso) tem-se batido desde há meio século, de uma forma não violenta, pela autonomia do seu país. Essa sua causa valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz, em 1989, prémio que deu uma maior, mas ainda assim, insuficiente visibilidade ao problema do Tibete. Muitos chefes de governo ocidentais rejeitam ainda hoje reconhecer Dailai Lama como um homólogo. Essa recusa prende-se sobretudo com o facto da China se apresentar actualmente como uma das economias em maior crescimento a nível mundial e de aquele país ser previsivelmente o país que partilhará com os Estados Unidos da América e com a União Europeia a liderança global ( a este respeito ler o artigo “A queda do império americano” que saiu na revista Courrier Internacional, número 146, de Abril de 2008). Assim sendo, a comunidade internacional, preocupada com possíveis relações comerciais com a China no futuro, não ousa pressionar o gigante económico que continua em crescimento, evitando a questão da violação dos direitos humanos, e quando confrontados com ela, e não lhe podendo escapar, abordam a questão com uma enorme precaução, procurando não tomar partido, embora por vezes revelem uma hipócrita e incolor preocupação. Enquanto isto se passa Pequim destrói a cultura tibetana de forma impune e defende-se afirmando que o Tibete conseguiu um impressionante crescimento económico sob o regime comunista.
No entanto, o fogo que Prometeu ofereceu aos humanos, e o sopro olímpico dos activistas dos direitos humanos e dos defensores da autonomia do Tibete na tentativa de o apagar, atearam um incêndio na comunicação social que deu nova exposição à situação que se vive naquele país. Face a este desenrolar de acontecimentos, o Parlamento Europeu, aprovou recentemente (por larga maioria) uma resolução através da qual solicita aos governos da União Europeia que boicotem a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, caso o Governo chinês não dê início a negociações com o Dalai Lama sobre a situação do Tibete. Neste novo quadro, os activistas dos direitos humanos continuam a acompanhar a tocha olímpica do outro lado do Atlântico, porém já não tentam apagá-la cientes de que se fizeram ouvir e de que, neste momento é importante não deixar esquecer o assunto, mas também não perder a credibilidade perante a opinião pública internacional.
Resta agora esperar que a União Europeia vinque a sua posição e que desse modo dê um contributo importante no sentido de solucionar a crise no Tibete.

“Depois de terem arrasado os quase 6000 mosteiros do Tibete, terem transformado os seus recintos sagrados em estábulos ou celeiros, de terem utilizado na construção de mictórios as tradicionais pedras inscritas com mantras, terem forçado milhares de monges e monjas a terem relações sexuais em público, terem queimado bibliotecas inteiras com manuscritos religiosos originais, terem blasfemado, insultado, ridicularizado e torturado centenas de homens santos que viviam em cavernas isoladas dedicados à oração, as autoridades chinesas ainda acreditam ter legitimidade para interferir no reconhecimento e escolha do novo Panchen Lama [ou Grande Sábio, segunda liderança religiosa no Tibete, logo depois do Dalai Lama] …”

Lia Diskin

In: Invasão do Tibete da Colecção Guerras e Religiões (Fonte principal deste artigo)


“O que está a acontecer nada tem de súbito. Mesmo nos blogues apertadamente censurados e outros “media” populares no Tibete, havia o sentimento de que a cólera crescia”.

“A luta tibetana perdurará por várias gerações, a menos que se encontre uma solução com o actual Dalai Lama.”

In: The Independent
Autor: Tsering Topgyal (autor tibetano que se encontra a preparar uma tese sobre o conflito sino-tibetano na London School Of Economics)
Artigo publicado em português na Revista Courrier Internacional de Abril de 2008

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Como prometido

Aqui vos deixo (e aqui guardo) o artigo do António Lobo Antunes de que vos tinha falado...
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"Agora que já pouco te falta
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Acabei de lanchar no cafezinho em que como uma torrada e voltei para aqui, o lugar onde escrevo e onde desde meados de Novembro não escrevo nada. Terminei um livro por essa altura, para ser publicado em Portugal no fim do ano que vem, e nestes mais de dois meses nem uma linha. Sento-me à mesa e nada. Há quatro ou cinco dias uma coisa começou a formar-se dentro de mim. Não posso dizer que seja uma ideia porque não é uma ideia, são filamentos, vozes, vagas caras que se desvanecem. Dá-me a sensação que é o próximo trabalho. Decidi começar no dia 25 de Fevereiro, na ilusão de que até lá o material se defina um pouco. Quero fazer o meu livro mais importante, o definitivo, o último, tão importante que, depois dele, já não precise de compor nada. Então saio e vou para um banco de jardim contar pombos e assistir à bisca dos reformados. Talvez ponha um anúncio de convívio no jornal. A semana passada li um desses em que o cavalheiro começava por anunciar que tinha carta de ligeiros e pesados. Fiquei a sonhar com a carta de ligeiros e pesados o dia inteiro. Noutro uma senhora pedia um homem educado e não fumador. Imaginei uma viúva a beber chá de tília a uma camila com braseira dentro. Talvez os nossos dedos se encontrassem no bule. Retratos de defuntos, incluindo um marido sombrio numa moldura com rosinhas de cobre, e ela a inspeccionar-me a roupa, suspeitosa. Dedos ossudos, quase transparentes, que deixavam que os acariciasse um momento antes de se escaparem numa vergonha corada. Um gato a desaparecer quando fechava os olhos, tornando-se bibelot. Cortinas a esconderem a rua. Sofás protegidos por plásticos. Uma esfregona num desvão.
Portanto desde meados de Novembro que não escrevo nada. Espero. Normalmente acho que acabei, que não volto a ser capaz. Agora apareceu-me este fiozinho de esperança. Mas o que me vem à cabeça é tão difícil de fazer, tão ambicioso, tão para além das minhas palavras e das minhas forças. Só começo quando estou bem seguro de não se capaz. Não seria mais fácil beber chá de tília a uma camila com braseira dentro?
22 de Janeiro hoje
Um dia sei lá porquê, longo, longo. Sol e pombos na rua, criaturas vestidas de verde a multarem ferozmente os automóveis estacionados, uma rapariga que caminha como os peixes do aquário, um espasmo de barbatanas e pronto. Saio da porta, volto à mesa. Onde é que eu ia? E quem se importa onde é que eu ia, onde é que eu vou?
As cartas por responder acumulam-se na mesinha. Caixotes de livros. Sorrisos de pessoas de quem gostei e a morte levou. Levou mas continuam comigo, tão presentes. Respiram. De algumas oiço-lhes a voz. Olá a todos, deixem-se estar aí. Embora finja que não necessito tanto de companhia. Um estar aí que é já muito. E daqui a nada noite e eu dissolvido nela. Dissolvido nela. Dissolvido nela. Até não me ficar nem uma ideia de quem sou.
Cavalheiro sem carta de ligeiros e pesados procura senhora nas mesmas condições, quer dizer sem uma ideia de quem é. Se abrir a torneira ouvirei o ruído do mar?
Em pequeno, na cama, as ondas chegavam até mim, uma após outra, misturadas com o vento nos pinheiros e o imenso mistério da vida. E escutava-as na certeza de ser feliz e eterno. Amanhecia e o mar calava-se. Via-o na janela no mesmo sítio, em silêncio, ele que no escuro encostava a cabeça aos caixilhos para me ver dormir e me seguia com aqueles olhos que o mar tem, ao mesmo tempo zangados e cheios de lágrimas e, no corredor da casa, os passos da insónia, tac tac tac. Não sei se a 25 de Fevereiro começo a escrever. Mudo de posição na cadeira, volto a página, pergunto
- Como é que se faz um livro?
Porque continuo sem saber como se faz um livro. Não me acho capaz de explicar os que até agora se publicaram, o que lembro melhor é o esforço enorme e, por vezes, mais raramente, uma alegria indizível. Ainda existirá algo em mim?
O mar e o cacto a seguir ao muro, a oscilar rigidamente. Agarra-te ao teu fiozinho de esperança, experimenta. Começa a preparar a mão, coisa que contigo leva tempo. Tenta que aquilo que existe em qualquer parte tua caminhe na direcção certa onde as palavras te esperam adormecidas. Acorda-as devagarinho, não escutes os passos da insónia, tac tac tac, no corredor. Tens 10 anos, 20 anos, tens todas as idades ao mesmo tempo, estás cheio de medo mas começa. O mar, o cacto, o sol, os pombos. Deixa tudo o que não seja o livro e começa. Se tiveres sorte é o teu livro. Se tiveres ainda mais sorte o teu último livro, a razão de teres nascido.
Depois, sem te voltares para trás, acenas adeus à medida que te afastas para um jardim de reformados até que a morte te diga
- Já vai sendo tempo, filho
e poderás sorrir-lhe como a uma namorada antiga que nunca envelheceu
sorrir-lhe
(entendes o que eu digo?)
numa mistura de timidez e confiança,
porque
(entendes mesmo o que eu digo?)
te tornarás feliz e eterno."


António Lobo Antunes
In Revista Visão (de 21 de Fevereiro de 2008)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Crises....

Hoje venho apenas registar que não sabia que podia ir, por vezes, uma distância tão grande entre uma vontade enorme de escrever, e escrever o que se têm vontade. O processo de transformação dos pensamentos, da imaginação, ou de reflexões, em palavras escritas que os, ou as, traduzam de uma forma fiel nem sempre é simples e nem sempre é espontâneo. Estou neste momento numa dessas fases em que apesar de ter muita vontade de escrever, quando a caneta começa a deslizar eu sinto-me logo insatisfeito com o pequeno traço que acabei de fazer. Acho que até a esferográfica se sente culpada pelos olhares que volta e meia deito ao que escrevi.
E note-se que escrevo sobretudo para mim, e que este é o meu “laboratório de escrita”, razão pela qual não me preocupo excessivamente com olhares naturalmente críticos de leitores virtualmente perdidos que venham dar a este cantinho da Internet.
Contudo, fiquei contente hoje quando li um artigo do António Lobo Antunes, que vinha na revista Visão de Fevereiro de 2008, que descreve uma crise idêntica de uma personagem, o que nas palavras dele me pareceu uma crise normal, e não um sintoma sério de uma falta de talento inata (de que ainda não estou certo de que não sofro).
Hei-de guardar aqui esse artigo nos próximos dias… E também continuarei a tentar vencer esta crise…

terça-feira, 1 de abril de 2008

Praia das Maças