Afonso dirigia-se para casa, caminhando calmamente pelas ruas da capital. A noite tinha sido agradável, passada com dois velhos amigos de faculdade, no Procópio, lá no jardim das amoreiras, bar de que se tinha recentemente tornado cliente habitual. Correram pela mesa histórias antigas, nostalgias e gargalhadas, que nasceram de sementes plantadas noutros tempos, e vários copos de cerveja belga, porque os gostos e os hábitos daqueles amigos, outrora rapazes, se tinham refinado, como convinha aos maduros cinquenta anos que os três já tinham. E foi essa bonita idade que os fez sentirem-se cansados, por volta das duas da madrugada e uma frase chave de Afonso (“Bem, vamos lá que amanhã trabalho...”) que os levou de volta para os respectivos aconchegos caseiros...
Afonso mentira... Não trabalhava no dia seguinte. Nem sono tinha ainda, mas de repente foi conquistado por uma vontade de ficar sozinho, sozinho não... de estar apenas consigo mesmo, que sozinho ninguém gosta de estar, e servira-se daquela mentira para atingir os seus objectivos, mas já lhe dizia o avô: “meu filho, quem não mente, quem não rouba, nem herda, nunca sai da merda...”. Afonso não estava na merda, longe disso, mas a vida também lhe foi ensinando que a mentira também o podia tirar de outros sítios mais cómodos.
.
Chegou a casa, pendurou o casaco no cabide, descalçou-se, e acendeu apenas o candeeiro de modo a pairar na sala uma luz suave. Depois colocou na aparelhagem Miles Davis, e deitou-se comodamente no seu grande sofá. Acendeu um cigarro e deixou os seus pensamentos à deriva, guiados pelo Jazz e pelo prazer sublime daquele cigarro naquele exacto momento.
.
- Inventa-me... – sussurrou-lhe uma voz por ele imaginada.
- Invento-te?... – respondeu Afonso imaginariamente. Mas quem és tu?
- Eu não sou... Eu queria ser. Mas para isso preciso que me cries, que me dês vida. Sou uma personagem. Um nada enquanto não fizeres de mim alguém.
- Uma personagem...? Engraçado... E queres ser uma personagem de quê?...
- Tu és escritor... Queria ser personagem de um dos teus livros, de um romance! Queria ser a personagem principal!
- Que ânsia de fama...
- No anonimato ando eu há tempo de mais. Faz de mim uma estrela!
- Duvido que o meu talento seja suficiente para realizar as tuas aspirações. Mas posso tentar ajudar-te... Darei o meu melhor... E és uma personagem masculina ou feminina?...
- Como te disse, ainda não sou... Terás de brincar de Deus, terás de ser o meu criador... – Afonso manteve-se em silêncio, reflectindo sobre o que a personagem imaginária imaginariamente lhe tinha dito. Deixou fermentar uma ideia secreta e de seguida respondeu:
- Pois bem... Serás uma personagem feminina. Deita-te então na chez long... Deixa-me olhar a tua inexistência para te imaginar. – e a personagem deitou-se, pousando para a imaginação de Afonso.
- Invento-te?... – respondeu Afonso imaginariamente. Mas quem és tu?
- Eu não sou... Eu queria ser. Mas para isso preciso que me cries, que me dês vida. Sou uma personagem. Um nada enquanto não fizeres de mim alguém.
- Uma personagem...? Engraçado... E queres ser uma personagem de quê?...
- Tu és escritor... Queria ser personagem de um dos teus livros, de um romance! Queria ser a personagem principal!
- Que ânsia de fama...
- No anonimato ando eu há tempo de mais. Faz de mim uma estrela!
- Duvido que o meu talento seja suficiente para realizar as tuas aspirações. Mas posso tentar ajudar-te... Darei o meu melhor... E és uma personagem masculina ou feminina?...
- Como te disse, ainda não sou... Terás de brincar de Deus, terás de ser o meu criador... – Afonso manteve-se em silêncio, reflectindo sobre o que a personagem imaginária imaginariamente lhe tinha dito. Deixou fermentar uma ideia secreta e de seguida respondeu:
- Pois bem... Serás uma personagem feminina. Deita-te então na chez long... Deixa-me olhar a tua inexistência para te imaginar. – e a personagem deitou-se, pousando para a imaginação de Afonso.
.
.
.
* Os fascículos desta versão sairão todas as quartas-feiras, salvo se a inspiração do autor faltar ao combinado.
8 comentários:
Estou a imaginá-la. Mas já percebi que quando paro para pensar nela, ela é apenas o reflexo de uma vida, de um sentimento, de um momento, de uma ocasião.
Não consigo imaginar-te! Porque estou a pensar em ti e tu já és. Podias pedir-me para te reinventar. Ficavas bem melhor se... mas não vale a pena, porque tu pediste foi para te inventar. Talvez... sim, já sei! Para mim tu serás... alguém.
Ainda não percebo porque existes, nem porque te inventei. Agora tenho a tua presença e já me sinto melhor. Fica comigo, seremos amigos, conversaremos, sejamos felizes.
Aquele abraço.
Não sei quem aqui deixou esta versão anónima. Apenas sei que é alguem por quem tenho grande estima...
Talvez aconteça que ao criarmos uma personagem a inspiremos numa pessoa, num momento ou num sentimento já vivido, mas pergunto-te então, em quem inspiraste tu essa tua personagem que imaginaste? (Esperando que me respondas abstractamente claro...)
E lanço-te um desafio... Completa aqui esse momento em que começas-te a imaginar tal personagem... Constrói um pouco mais... Faz a tua versão...
Aquele Abraço
Foi ele que me imaginou...
Estou destroçado, amigo... mas já lá vamos, para já conversemos.
Estava a imaginá-la, a personagem, claro. O meu problema estava na imaginação, repara só, não consigo abstrair-me da vida. A vida toldou-me a imaginação, o meu pensamento orientou-me para a personagem que criei. Enfim...
Mas permite-me esta intromissão na conversa e deixa que volte ao início.
Percebi ontem, depois do jantar. Estava a pensar com os meus botões "Porque hei-de de imaginar?" e de seguida ouvi uma voz...
"Pssst!... Pssst!... Ei, como vai essa vida?"
Fiquei doido, pensei. Respondi. Ou penso que respondi. Não me lembro, mas não voltei a ouvir a voz.
Fiquei transtornado com o acontecimento, pensativo... até que percebi!! Eu fui criado, eu sou a personagem! Uma personagem! Eu!! Estou confuso, não sei o que sentir, mas diz-me, honestamente... serás...
... serás tu o meu criador?
Aquele abraço!
Engraçados esses teus pensamentos... Que foste criado é certo... E agora, que já sei quem és... Sei que, embora seja arrogante pensá-lo, eu criei um pouco da tua personalidade, como tu criaste um pouco da minha, uma vez que crescemos juntos, e fomos certamente (boas) inflências um para o outro.
Mas não... Não fui eu quem te criou... Quem te imaginou, quem te colocou neste palco, nesta peça de teatro, de que não te consegues abstrair quando tentas criar uma personagem, não fui eu, obviamente...
Conhecendo-te, diria que pensarás que quem nos inventou foi essa entidade superior em que tu acreditas convictamente, e que eu tenho dias em que acredito, outros em que não creio que exista...
Por minha parte, defenderia que és resultado de uma longa evolução, enquanto ser. Enquanto pessoa, és fruto de experiências, convivências, convicções, dúvidas, conversas, acasos, e todas as outras coisas que fazem de nós o que somos...
Ficarei então à espera que me digas quem julgas ser neste momento o teu/nosso criador. E espero também que faças um esforço para criares uma personagem, ainda que ela nasça impregnada das tuas experiências de vida...
Aquele abraço
Sabes que mais?
Isto está a ser melhor do que julgava! Então eu fui criado... Não sei se tu foste criado, não tenho a certeza que alguém tenha sido criado, mas eu fui!
Só por si, por este facto, já me sinto um fenómeno! Estou mesmo feliz! Presunçoso? Vaidoso? Talvez... Mas eu existo e talvez tu não existas.
Estou a pensar, "será que fui eu a criar-te?", caro Lourenço. E esta é a melhor parte: como disseste, acredito num criador e agora já sou capaz de imaginar! Imaginar o meu próprio criador!
E se fui eu que te criei... então a imaginação talvez não seja condicionada pela vida, mas orientada por mim, extrapolando as barreiras que julguei que me limitavam.
Deixa-me aproveitar este momento de glória. Voltarei. Para criar e recriar esta conversa que estou a imaginar.
Aquele abraço.
Presunçoso?... Sim... Na parte em que dizes que talvez tenhas sido tu a criar-me... :p
Então, no teu regresso, concretiza-me essa promessa. descreve-me esse teu criador que conseguiste imaginar.
Gostei bestante da tua dúvida... Será que a nossa imaginação está subordinada às nossas inúmeras experiências?... Ou será que é por nós orientada, sendo no entanto ilimitada?...
Tomando partido, defenderei que a nossa imaginação é ilimitada, por nós orientada e muito influenciada pelas nossas vivências... Enquadrar-me-ei na Escola conciliadora das duas correntes.
Agora... Gostava também de saber como chegaste à conclusão de que foste criado (só te admitindo que me digas que foi Decartes que te ensinou a chegar a tal solução)...
Afinal... é a beleza de vivermos! Já lá vamos.
Não posso saber se existes. Mas vejo-te. Falo contigo. Mas isso também o fiz durante a noite com outros seres que sonhei.
Interessante, ainda não sei se existes, não sei se te criei, se foste criado por outro, se fomos criados.
Acho que poderemos discuti-lo, mas nunca saberemos a resposta pela razão.
Como argumento único a meu favor, tenho para mim mesmo que eu existo (seja, ou não, o Descartes a dizê-lo). Este argumento não é (nem nunca poderá ser) válido para ti.
Na minha presunçosa humildade (curiosa conjugação de palavras, apenas possível a um... criador) posso definir-te e a tudo como resultado da minha esplêndida criação.
OK! Vou deixar-me de fantasias. Este diálogo tem pano para mangas e mesmo que sejas resultado da minha criação, receio que te canses destes argumentos.
O que mudou foi a descoberta desta felicidade, resultado do diálogo. Saborieo as decisões que tomo em cada momento, como se realmente fosse um criador. A vida... sim, a vida. Um espectáculo!
E enfim (nessa tua última frase encontramos) a concordância. Mas hei-de voltar cá com outros argumentos para te provar a minha existência...
Aquele abraço
Enviar um comentário