
Convidei a rapariga que toca piano para escrevermos juntos uma história, para que pudessemos diluir nessa história as nossas versões da vida, das pessoas e do Mundo, misturando escritas, imaginações, sonhos, inocências, experiências e cogitações. A rapariga que toca piano, amavelmente, aceitou o convite, e assim soaram os primeiros acordos deste dueto escrito...
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(Aguardo com expectativa pelos próximos acordos)
6 comentários:
"Este livro nasce da ausência e da minha necessidade de preencher os dias presentes recordando o passado..."
Foi esta a primeira frase que escreveu no caderno de folhas lisas, que estivera durante anos esquecido, numa prateleira discreta de uma livraria e papelaria, situada na baixa lisboeta, onde se encontravam os restos de colecção dos últimos vinte anos, e que constituíam uma fabulosa colecção de material de escritório que ninguém tinha tido o mau gosto de comprar. Ao contrário das outras estantes, por cima das quais pomposas etiquetas havia, onde se podia ler: “Grandes Clássicos”; “Literatura Estrangeira”; “Filosofia; “Artes"; “Ciências”; “Arquitectura”; “Direito”; e outras coisas que tais, que enchiam qualquer estante de orgulho e de conhecimento, a estante recôndita, onde se encontrava o tal caderno não possuía qualquer classificação, pois o gerente da loja defendia que naquela livraria nenhum cliente devia ser levado ao engano, e não podia, por motivos óbvios, mandar colocar por cima da dita estante uma etiqueta a dizer “Lixo”, a bem da verdade e como prova da sua honestidade imaculada. Miguel, que tinha por alcunha “engenheiro”, por dar ares de tudo entender, sendo um empregado mais afoito, emitiu parecer sobre a matéria em causa, advogando que também aquela estante devia ter uma etiqueta, e que essa etiqueta devia ser a mais apelativa, uma vez que, aquela era a estante que mais publicidade necessitava. Talvez… “démodé”! Exactamente! Uma palavra estrangeira que vem oferecer estilo à estante que não o tem! Que grande estrangeirismo! Já viu que boa ideia?! Perguntou o engenheiro ao gerente, cheio de entusiasmo. Mas o gerente, que já tinha assistido a outros momentos luminosos, ou mesmo ofuscantes, do engenheiro, como certa vez em que este se lembrou, enquanto limpava os vidros da montra, que os livros lá expostos deveriam ser colocados de pernas para o ar, para dessa forma atraírem mais a atenção dos transeuntes; respondeu seco e enervado: - “Raios te partam!!! Agora sabes de marketing e publicidade… Hó meu energúmeno!… Se tu percebesses alguma coisa disto era que punha livros nas prateleiras e eras tu que mandavas! Vai mas é trabalhar que estão aí muitos caixotes cheios de livros para meter nas estantes.” E o engenheiro foi, pôr livros nas estantes e pensar como seria a loja se fosse ele a mandar. Uma coisa era certa, se ele mandasse colocaria o gerente na secção do démodé, mas bem escondido para não espantar a clientela.
O livro era ideal para o efeito… Tinha capa grossa, de tonalidade amarelada, não se percebendo se era a sua cor original ou se era tinta do tempo. As folhas eram lisas, o que lhe permitia escrever ou desenhar, conforme lhe apetecesse. E na capa, um retrato de Nietzsche, de perfil, a fumar o seu cachimbo, compenetrado. Ainda não sabia o que ia escrever no caderno. Em princípio, desabafos. Logo, desabafar com Nietzsche seria um privilégio. E podia ser que se desse o caso de o filósofo a inspirar e que naquele caderno nascesse alguma coisa especial.
O gerente, por traz da caixa registadora, pegou no caderno, abriu-o na última página, onde um lápis mal afiado tinha escrito com risco duplo “0,20”. –“Ora, vinte escudos… portanto, dez cêntimos, menina…”. Nietzsche arregalou os olhos, sentindo-se humilhado. Isto a rapariga não viu mas sentiu, ao ouvir o preço, passou a mão pela capa do caderno, doendo-se do mesmo mal que Nietzsche, embora, ela no abstracto, ele em concreto – do valor e da importância que o tempo rouba a tudo. De seguida, procurou uma moeda de dez cêntimos na carteira mas não tinha nenhuma de tão baixo valor. Entregou outra moeda ao gerente e este devolveu-lhe nove moedas iguais à que ela ainda há pouco procurava.
Mas regressemos ao inicio da nossa história, dado que eu resolvi dar a conhecer a atitude da nossa personagem principal na escolha do caderno que a acompanharia na sua viagem, e por solidariedade com a sua causa, dar protagonismo ao caderno que nunca o tinha tido.
Depois de escrita aquela primeira frase, ficou a olhar para as letras bem desenhadas que tinha acabado de escrever, esperando que uma outra frase lhe ocorresse. Mas essa frase não veio. O processo criativo tinha cessado. Não se obrigou a continuá-lo… Olhou para a janela que lhe oferecia um postal de Amesterdão e decidiu realizar os seus caprichos momentâneos. Levantou-se, foi buscar a um saco de compras um chocolate, uma garrafa de vinho tinto e um maço de cigarros e dirigiu-se para a varanda do quarto que tinha alugado, onde se sentou a gozar desses pequenos prazeres enquanto via a vida passar.
Eles vão escrever um livro. Um livro não, uma história. Os livros são grandes e levam tempo, a escolha, a vivência, os sonhos... Uma história é interessante, é curta, é lida com paixão, brevidade e cheia de intencionalidade.
E os livros têm capítulos. Capítulos com muitas histórias... ou contos... ou poesia...
O livro nasce, necessariamente, da história, que nasce, necessariamente, da partilha que eles vão escrever-nos. (Também fico a aguardar com expectativa)
Sentia-se perdida. Tinha um jeito torpe de orientar a sua vida...orientação era, aliás,o seu Calcanhar de Aquiles...e por isso tinha decidido ficar no seu quarto,onde certamente não precisaria saber ler um mapa para não se perder...
Pensou então construir uma teoria que reunisse um conjunto de atitudes que a caracterizavam, que tinham estado presentes em todos os momentos marcantes da sua vida.Pontos comuns,presentes em diferentes situações deveriam ser bem analisados.Aí estava a chave. Todos os que lessem esta teoria deveriam chegar ao mesmo resultado: à situação em que ela se encontrava agora...
Pensou melhor...talvez fosse demasiado duro resumir o resultado de uma vida a um conjunto de caracteristicas de uma só pessoa...Achou então que outras variantes deveriam ser tidas em conta e que palavras como sorte,azar,destino,paixão (que por vezes confunde os sentidos), deveriam ser ponderadas...
O chocolate estava inteiro...
A garrafa...vergonhosamente vazia...
Basear forçosamente toda a sua vida numa teoria irrefutável (pelo menos para si) parecia-lhe uma ideia brilhante, à qual deveria voltar...
Pensou ter encontrado a solução. Talvez nessa teoria transformada em verdade, conseguisse colocar todas as culpas nas outras variantes...
e tirar de cima do seu corpo frágil o peso de tantas desilusões.
Deitou-se...o quarto girava e ela esperava ansiosa que alguém escrevesse o rumo da sua história...
Mas tal era impossível… Escrever o seu rumo era algo que apenas ela poderia fazer. E ficar ali deitada a ver o quarto girar não era maneira de escrever o seu rumo. Levantou-se de vagar, dirigiu-se à varanda do quarto, e tirou um cigarro do maço ainda cheio. Acendeu-o e ofereceu-se o tempo de um cigarro para não pensar em nada.
Escolhera o Hotel Amstelzicht para ficar porque um casal amigo lhe tinha recomendado. Estava contente por tê-lo escolhido. Situava-se no coração de Amesterdão, ao pé do canal Amstel. O nome do canal coincidia com o nome do principal rio de Amsterdão. Amstel provinha de Aeme stelle, que no holandês antigo queria dizer área com água em abundância. E foi àquele rio que a capital holandesa foi buscar o nome.
Além disso, o hotel ficava muito perto da praça Rembrandt, a maior praça do centro de Amesterdão.
Enquanto Ana, fumava o seu cigarro, abstraída no nulo que tentava, com dificuldade, impor ao seus pensamentos, a vida na rua sobre a qual os seus olhos pousavam seguia agitada. Por ela vinha passando um estudante de arquitectura com um sorriso no rosto. Uma boa nota num trabalho era a causa do sorriso. Parou para acender um cigarro, e depois de o fazer, levantou os olhos e reparou em Ana, quieta, absorta… Ficou um pouco a olhá-la sem pressas para chegar ao seu destino e depois seguiu o seu caminho, atento às cores vivas da cidade, às brincadeiras de duas crianças, à beleza das raparigas que com ele se cruzavam, e ao sol brilhava num céu azul como há algum tempo não se via.
Ana acabou de fumar o cigarro e voltou à consciência. Abanou a cabeça e decidiu sair. Às vezes precisamos perdermo-nos para nos encontrar-mos, pensou, e não era o fraco sentido de orientação que a ia fazer ficar no quarto, afinal, tinha vindo para passear e não para se enclausurar para reflexão. Compôs-se e saiu do hotel. Olhou em redor. Pareceu-lhe estar uma claridade baça. Irritou-se por uma criança ter vindo contra ela fugindo de outra. Ignorou as pessoas e os edifícios que a rodeavam e escolheu como bússola a intuição seguindo depois pelas ruas ao acaso.
Voltaram-lhe aos pensamentos a ideia que tinha tido de construir uma teoria que resumisse a sua vida. De repente lembrou-se de uma frase que tinha lido não se lembrava onde: “Nada foi como eu quis, foi tudo como eu sou”. Sim… Era uma frase simples que permitia explicar toda a sua vida.
Mas gostava da sua forma de ser, e se aquela frase não deixava de lhe parecer verdadeira, não via razões justificar aquele sentimento de inadequação ao Mundo com base na sua maneira de ser. Era uma pessoa alegre por natureza, e aquela invulgar tristeza não tinha explicação óbvia. Pensou então que realmente a personalidade de cada um influencia de forma decisiva as escolhas que tomamos, e que as pessoas tinham as mais variadas formas de ser. Questionou-se então se as pessoas nasceriam com uma determinada forma de ser, se propendiam para ter uma determinada personalidade ou se a vida de cada um era responsável pela sua personalidade. Decidiu-se pelo meio termo. Se a vida de cada era em parte responsável pela maneira de ser das pessoas, as pessoas também tinham uma predisposição natural, inerente ao próprio ser, para serem de determinada maneira. Pareceu-lhe que talvez a vida se resumisse a isso, à construção da personalidade. E foi aqui que encontrou maneira de aliviar as suas culpas… Era provável que precisasse de errar para apreender a ser, para aperfeiçoar a sua personalidade. E aqui ocorreu-lhe a palavra destino, de que se tinha lembrado quando ainda estava no quarto. Se a sua maneira de ser a levava a tomar certas e determinadas decisões, por vezes erradas, talvez a própria vida a conduzisse, discretamente, premeditadamente, à tomada de decisões mediante as quais ela escolheria a pior opção. Isto tudo com o propósito de a ensinar. Fazia algum sentido. Além disso, constatava agora que tudo no Mundo assentava num equilíbrio entre dois opostos. A temperatura do planeta, entre outros inúmeros factores, devia-se ao sol e às calotes polares, cujo degelo, levava ao aquecimento global. O funcionamento fisiológico do seu corpo equilibrava-se suprindo necessidades, se tinha sede e bebia água ficava saciada e o seu organismo funcionava. E nesta lógica, os erros cometidos pelas pessoas talvez tivessem uma certa função correctiva na sua personalidade, permitindo-lhes, ao reparem nos erros cometidos, procurar de novo o equílibrio, suprimindo esses mesmos erros. Apelidou-lhe a teoria do erro suicida, o erro que existia para se auto-exterminar, e depois, finalmente sorriu. E como um relâmpago, lembrou-se de outra frase que lera: “Sacrifica o que és pelo que queres ser”. Batia certo com o que havia acabado de pensar. Ficou contente e deu graças ao vinho que tinha bebido e ao cigarro que tinha fumado por lhe ter dado destreza de raciocínio para inventar tal teoria, não pelo seu mérito duvidoso mas porque a tinha divertido.
“Sacrifica o que és pelo que queres ser” voltou a ecoar-lhe na cabeça. Apeteceu-lhe de repente mudar de visual. Podia ser que lhe fizesse bem.
Entretanto viu ao fundo o Hortus Botanicus, um dos mais antigos jardins botânicos do Mundo. A hipotética mudança de visual ficaria para mais tarde…
(Desculpa a minha demora rapariga que toca piano, mas como sabes, a minha vida tem andado um caos. O meu tempo, no meio de tudo isto, esgota-se em coisas bem menos aprazíveis do que fazer ecoar alguns acordos deste dueto. Já há alguns dias que queria ter aqui escrito, hoje finalmente consegui. Um bom dia para ti.)
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