quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Masterpiece ( Fascículo II )

Afonso permaneceu alguns minutos quieto, imóvel, estático, em paz com todas as coisas, olhando fixamente para a sua personagem ainda vazia.
Depois, imaginariamente, disse:
- Serás uma mulher... Uma mulher inteligente e culta. Serás perspicaz... - pensou mais um pouco e continuou.
- Serás discreta... que é uma das características que mais aprecio nas pessoas. E terás uma elegância invejável. E como me parece que fumar é um acto socialmente elegante, e porque me apetece ter companhia para fumar um cigarro, permite-me ser déspota, e determinar que fumarás. - E dito isto, Afonso sentou-se no sofá, retirou dois cigarros do maço de tabaco, um real e um imaginário, e estendeu o cigarro imaginário à sua personagem.
- Fumas?
- Sim, agradeço. E que mais serei? - Afonso emprestou o seu isqueiro de prata à personagem. Quando esta lho devolveu, viu na transparência uma mão delicada, com dedos finos e compridos e unhas cuidadas, mas não revelou a sua visão à personagem. Acendeu o cigarro, deu um trago profundo, fez um compasso de silêncio para permitir que as ideias voltassem a organizar-se, até que por fim, de olhos fixos no fio de fumo que lhe desfiava o cigarro, respondeu:
- Tenho uma dívida grande com Deus... Vou pagá-la a ti, esperando que o Altíssimo se dê por pago... Terás livre-arbítrio, serás tu a formar a tua personalidade, partindo do que já determinei.
- Isso condiciona-me, o que já determinaste. Mas agradaram-me os traços da minha personalidade que acabaste de desenhar. Ainda assim... Estou também, e sobretudo, condicionada pelo teu livre-arbítrio, pelo que o teu livre-arbítrio me permitir, uma vez que o meu livre-arbítrio pertence ao teu por inteiro.
- Sim, é verdade. - Afonso voltou a deitar-se no sofá, meditando sobre o que a sua personagem lhe tinha acabado de dizer. Deu um último bafo num resto de cigarro, que já se tinha transformado quase por completo em fumo e cinza, apagou-o, e disse resoluto:
- Pois bem!... Serei esquizofrénico... Parece que é pré-requisito para se ser um grande génio. Ciente das minhas comedidas capacidades, não serei esquizofrénico aspirando vir a ser um grande génio, será apenas uma tentativa de te libertar... Ainda que a minha esquizofrenia seja também ela imaginária. Enfim... Quero dizer... Esforçar-me-ei por te libertar.
- Está bem. Esse esforço basta-me. E fisicamente? Como serei? - perguntou a personagem.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Masterpiece ( Fascículo I )

Afonso dirigia-se para casa, caminhando calmamente pelas ruas da capital. A noite tinha sido agradável, passada com dois velhos amigos de faculdade, no Procópio, lá no jardim das amoreiras, bar de que se tinha recentemente tornado cliente habitual. Correram pela mesa histórias antigas, nostalgias e gargalhadas, que nasceram de sementes plantadas noutros tempos, e vários copos de cerveja belga, porque os gostos e os hábitos daqueles amigos, outrora rapazes, se tinham refinado, como convinha aos maduros cinquenta anos que os três já tinham. E foi essa bonita idade que os fez sentirem-se cansados, por volta das duas da madrugada e uma frase chave de Afonso (“Bem, vamos lá que amanhã trabalho...”) que os levou de volta para os respectivos aconchegos caseiros...

Afonso mentira... Não trabalhava no dia seguinte. Nem sono tinha ainda, mas de repente foi conquistado por uma vontade de ficar sozinho, sozinho não... de estar apenas consigo mesmo, que sozinho ninguém gosta de estar, e servira-se daquela mentira para atingir os seus objectivos, mas já lhe dizia o avô: “meu filho, quem não mente, quem não rouba, nem herda, nunca sai da merda...”. Afonso não estava na merda, longe disso, mas a vida também lhe foi ensinando que a mentira também o podia tirar de outros sítios mais cómodos.
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Chegou a casa, pendurou o casaco no cabide, descalçou-se, e acendeu apenas o candeeiro de modo a pairar na sala uma luz suave. Depois colocou na aparelhagem Miles Davis, e deitou-se comodamente no seu grande sofá. Acendeu um cigarro e deixou os seus pensamentos à deriva, guiados pelo Jazz e pelo prazer sublime daquele cigarro naquele exacto momento.
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- Inventa-me... – sussurrou-lhe uma voz por ele imaginada.
- Invento-te?... – respondeu Afonso imaginariamente. Mas quem és tu?
- Eu não sou... Eu queria ser. Mas para isso preciso que me cries, que me dês vida. Sou uma personagem. Um nada enquanto não fizeres de mim alguém.
- Uma personagem...? Engraçado... E queres ser uma personagem de quê?...
- Tu és escritor... Queria ser personagem de um dos teus livros, de um romance! Queria ser a personagem principal!
- Que ânsia de fama...
- No anonimato ando eu há tempo de mais. Faz de mim uma estrela!
- Duvido que o meu talento seja suficiente para realizar as tuas aspirações. Mas posso tentar ajudar-te... Darei o meu melhor... E és uma personagem masculina ou feminina?...
- Como te disse, ainda não sou... Terás de brincar de Deus, terás de ser o meu criador... – Afonso manteve-se em silêncio, reflectindo sobre o que a personagem imaginária imaginariamente lhe tinha dito. Deixou fermentar uma ideia secreta e de seguida respondeu:
- Pois bem... Serás uma personagem feminina. Deita-te então na chez long... Deixa-me olhar a tua inexistência para te imaginar. – e a personagem deitou-se, pousando para a imaginação de Afonso.
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* Os fascículos desta versão sairão todas as quartas-feiras, salvo se a inspiração do autor faltar ao combinado.